Essa estória é sobre a pequenina Folha de Ramos Álvares. Órgão laminar que dotada de forma simétrica bilateral e coloração verde, matuta sobre suas experiências no seu leito de dor, o solo.
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Depois do orvalho gélido que me torturava como uma judia no holocausto e do frio cortante que passei no inverno, pensei que poderia enfrentar qualquer coisa à posteriore. Nada seria difícil depois daqueles quatro meses – otimista eu refletia. E errei.
Entretanto, benditos foram os dias que vivenciei na primavera. Em companhia das mais formosas flores, gozava a minha juventude.
Oscilante perante as brisas que massageavam minhas bordas, eu entoava sons sibilantes em sintonia com minhas irmãzinhas e o meu amigo Cigarra - que estridulava em um galho sinuoso, vizinho ao meu. Vivaz, eu sempre brincava com minhas irmãs: as Folhagem, provenientes da minha estirpe, não apenas cantavam retumbantes, como também dançavam aos seus próprios sons.
No ar puro, do qual eu também me alimento, presenciava o planar dos finos pós que esvoaçavam das floríferas (geratrizes das Flores), depois do breve toque de uma abelha entremeada de listras amarelas e pretas. Era lindo poder presenciar a primeira fase das muitas que perpetuam a minha espécie! Ah, que maravilha é a fecundação!
Mas, nem tudo são flores: por conseguinte viria o verão.
Dizia minha Mãe-Terra (na verdade, madrinha): “ - Passaremos por intempéries” - alertava-me. Naquela época de calor e pouca chuva, eu me rendia ao sol escaldante ingenuamente: punha meu biquíni para me bronzear e me divertia muito, principalmente com minhas irmãs - todas desnudas para que não ficassem tatuadas por queimaduras do astro rei, o maravilhoso Sol.
Eufórica com as chuvas torrenciais e momentâneas clássicas do veraneio, às vezes fitava os Galhos que se punham estáticos: Tentava entender o por quê de todo aquele pessimismo. Eles, bem mais velhos que nós, as jovens Folhagem, preocupavam-se com os efeitos da presente seca. Não por motivos próprios, pois resistiriam facilmente a escassez de água naquele momento de aridez, enfrentando tranquilamente o que estivesse por vir. Ainda assim, suas preocupações reinavam inquietantes para conosco.
Nunca compreendia os Galhos, visto que éramos seus para-raios-solares. Nós os cobria, não por respeito aos seus altos escalões hierárquicos (uma vez que dependíamos dos Galhos para sobrevivermos), mas sim, pela nossa simples disposição espacial (éramos superiores a eles, ao menos nesse sentido). Sorte a deles, de viverem na sombra e com água fresca. Deste último privilégio eu nem reclamo, pois eles sempre me guarneciam com tão precioso e nutritivo líquido cristalino.
Mas o tempo passou mais uma vez, levando consigo outra estação. A época que não agradava os Galhos chegou: É outono.
Agora é tarde demais, posso presenciar o sucumbir de algumas irmãs que dispunham-se mais altas que as demais, na Mãe-Árvore (a biológica). Com maior proximidade ao Sol elas secaram-se mais rapidamente.
Atualmente senil, sinto-me seca, com minhas lâminas atrofiadas. Percebo que o meu caule não mais possui o mesmo tônus que eu esbanjara em estações passadas, sobretudo nas danças empavonadas da primavera. Pendente, a qualquer instante corro o risco de desprender-me da minha morada e assim perder minha fonte de energia.
Seguidamente, tive dois pesadelos aonde agonizava num solo fétido (talvez o próprio húmus) e posteriormente era dilacerado por numerosas Piaçabas à comando de um cabo rabujento. Em seu fardão, na linha do tórax, contralateral a algumas condecorações e um brasão, estavam grafados em maiúsculas o seu último nome subsequente ao seu título militar: CABO VASSOURAS. O que um cabo fazia comandando um exército, creio que nem Freud explicaria. Mas... fazer o quê?
Um alarme: Vejo a haste que sustenta minha irmã mais próxima, sobretudo melhor amiga, se romper. Agora sinto-me ainda mais ameaçada. Algo me sufoca, me aflige. Num instante minha vida vegetal passa diante dos meus olhos. Olhos? Não os possuo, mas posso enxergar todas experiências que senti no meu corpo laminar que pulsa o verde remanescente da minha seiva, agora quase extinta.
Seca, caio de maduro (expressão usada por alguns amigos frutíferos). Do galho superior número três, ramo segundo do galho afluente à esquerda, eu despenquei até o solo - não rapidamente como havia dito “ de maduro”, mas lentamente.
Nos meus últimos segundos, eu usufruía da bela vista do lindo jardim que recendia o perfume das Rosas – por sinal, também lindas.
Ao tocar no solo molhado e negro, agonizante e pronta para o meu sucumbir, deparo-me à uma irmã - a mais velha delas. Ela conforta-me com a última mensagem que fora por mim ouvida, antes que eu olvidasse de toda minha existência pelo padecimento:
- Acalme-se – disse ela em voz macia. Estamos fechando o nosso ciclo para possibilitar o início de novos outros. Lembra-se do sorriso que radiava brilhante na sua face quando presenciara a fecundação dos óvulos pelo pólen adejante? Pois bem, estamos numa situação parecida. Esta mesma terra que gela sua barriga achatada e simétrica, que exala imenso fervor quando fornece água aos sorvos à raiz de nossa Mãe-Árvore, que por sua vez nos nutria: pois seremos nós. Transmutaremos-nos neste produtivo solo, que nunca morrerá, pois é dotado da imensa responsabilidade de dar anos às vidas dos filhos de nossa Deusa, a Natureza.
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A folha, agora repleta de experiências de todas as épocas do ano, olha para cima, fita sua Mãe-Árvore desnuda de folhas, olha ao lado suas numerosas irmãs estendidas no solo e compreende que: viver é acima de tudo perpetuar a vida.
Outono de 2009
Bom... esse eu já tinha lido!
ResponderExcluirE chega a dar pena vendo a folha assim...
E esse litro também ficou muito bom!
Abraços!