Nunca achei que pudesse ser tão difícil chegar à janela. Bengala, primeira perna, segunda... Mão no braço do sofá, de novo a bengala. Desde cedo ouvia muitas vozes se ajuntarem lá no lado de fora, e eis que decidi me livrar da velhice e ver como uma beata de janela o mundo que vaga intermitentemente pelas ruas de minha cidade. Lá embaixo crianças parecem decidir aos berros qual será o time da pelada. Particularmente um jovem me chama atenção, ele é o mais intimidador. Noto os olhares dos outros em relação a ele. As palavras soam enérgicas e o indicador aponta o lado que os escolhidos devem seguir, e eles seguem sem titubear. Os mais fortes ficaram junto ao líder a que todos chamam “Bala”. Coincidentemente os descamisados, os robustos moleques, eram os mais habilidosos. E nesse jogo de cartas marcadas os franzinos adversários aceitavam sua sentença miúda e previsível. Dez minutos de jogo e os meninos já cintilavam de suor e verdade. Eram os campeões do mundo. No país do futebol eram os próprios representantes magnos da realidade de pequenos atletas. Ocultam-se os delitos que porventura algum dos jogadores cometeu, e a platéia se delicia nos dribles de Bala e companhia. Lá não existe juiz, e se houvesse Bala já o teria ameaçado com seu jeito rápido e déspota de resolver as coisas. Acho que agora terminou, vejo que todos caminham para o mesmo lado da rua. Não sei o placar. Sinalizam com as mãos, mas não consigo ver. Vejo daqui que alguns se sentaram no meio fio. Nas calçadas/arquibancadas uns meninos mais jovens que ficaram de fora se apossam da bola e saem procurando repetir os gestos dos mais velhos. Sinto daqui o cheiro de vida que há tempos não reconhecia. Não há em nenhum livro a imensidão que eles não só enxergam, mas vivem. Agora não mais vejo, acho que sou visto em alguma janela mais acima. Porém não tenho uma juventude invejável a ser admirada. A sabedoria não está nos livros, nem no olhar lançado aos meninos. Acho que é preciso ver a bola e se deixar suar. Correr por entre os iguais e tentar insistentemente alcançar o seu objetivo. E mesmo que não alcance, sentar-se no meio fio e sentir no seu corpo o merecido descanso momentâneo. Apagar a luz das idéias e estratégias, repousar o medo da derrota. E deixar que vida siga com seus jovens, e ver nisso a beleza que é a sua beleza. Crianças que jogam bola, e de novo o começo, e de novo o corpo que cansa, e de novo. Como num eterno campo de fazer lembranças e acertos imediatos.
segunda-feira, 8 de novembro de 2010
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ResponderExcluirUm digno texto fabriceano!E é tão bom – voltar – aos meus frabriceamentos, e logo de primeira mão, eu pego um tema cascudo e delicioso.O texto me lembra a minha vida de moleque que não teve bolas nos meus pés,mas passei anos a observar cenas assim!O seu texto é tão possível,Fabrício!
ResponderExcluirO Bala é tão real,tão palpável que nesse instante mesmo observo – veja que glória – um de sua raça de líderes a gritar perto de minha janela.O que se repete são as pessoas ou as situações?
Sim,voltar a ler o que se escreve nesse blog é uma experiência apaixonante,que eu renovo.E isso me causa um status delicioso!
http://johnrmulo.blogspot.com/2010/11/meu-tempo-de-morangossim.html
www.johnrmulo.blogspot.com
Um texto silencioso. Embora se possa ouvir o som das crianças lá embaixo, berrando "foi gol, foi gol!". Quando a gente é criança, não perde nada. Quando se é adulto, tudo é uma derrota. Ótimo texto, Fabrício.
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