UM GOLE DE IDEIAS

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terça-feira, 27 de abril de 2010

Manual da angústia

Hoje escrevo àquelas pessoas afortunadas, para aquelas que de tão felizes possuem uma grande dificuldade de cultivar no âmago seus questionamentos e inquietações. Não é nada fácil largar esse estado de gozo eterno e encarar uma angustiazinha; mais difícil ainda é reconhecer que o mal que se tem é esse. Está aí um bom ponto de partida: o primeiro passo pra uma boa angústia é notar a vontade de ser assim.

Definições e apoio científico sempre ajudam nessas coisas. Fui ao Aurélio e ele me trouxe essas definições: “1.Grande ansiedade ou aflição; ânsia, agonia. 2.Grande sofrimento ou atribulação.” Podemos continuar relacionando a grande tendência de nossa contemporaneidade, a felicidade plena, e reconhecendo a dificuldade que me trouxe esse tema.

O estado de “quase” pode ser o primeiro sintoma visível. As respostas automáticas aos quase amigos também. Eu falo daquele “estou bem” que sai sem saber porque, e que preenche o angustiado do lado de lá que responde, geralmente, com um “estou bem também”. Nesse ponto a angústia é fantasiada de felicidade que dura o tempo de um baile a fantasias, basta perguntas mais invasivas.

Se você tem os sintomas acima mencionados, não se preocupe. As necessidades mais específicas e a exigência no mercado da felicidade podem justificar momentaneamente o que você chama de crise. Talvez este seja o ponto chave: não trate a angústia como uma crise. Depois de constatada só lhe resta um caminho passivo e solidário a ela. Você não procura mais a felicidade e sim um tempo sem angústia. A exigência vai passando ao passo que o tempo de convivência aumenta. No fim ficamos bem com ligeiros segundos felizes, e o tempo quase que integral é dela.

Neste outro parágrafo pretendia narrar com detalhes explícitos a angústia que foge aos dicionários. Agora um filtro antirrecorrência me impede do óbvio. Não me embrenharia linha afora pra dizer o que vocês já sabem e vivem tão cotidianamente.

A angústia se multiplica no vazio, se mistura à falta de tempo, bebe das crises existenciais, se alimenta do hiato amoroso e da falta de palavras. Quando estiver a sós com ela não transmita vontade de se ver livre, não deboche da falta de motivos nem pense ser mais uma viajem de seus pensamentos tortuosos. Encare-a! Cale a voz, a sua voz, e sinta-a. Viver a angústia pode ser o primeiro passo pra reconhecer os próximos momentos de alforria.

Este texto, por exemplo, que se nega... que se contradiz... que se resume... pode ser gerado de angústia e para a angústia. E o clube dos angustiados ganha mais associados a cada dia. Estamos tão desamparados e carentes que apelamos, imploramos por palavras. Qualquer palavra que nos mostre a felicidade. Autoajuda pra ganhar dinheiro ou novo cônjuge, pra conseguir emprego ou paz espiritual. Não importa a via de reza, importa agora o bem viver. Ah!, como eu queria ver: “Vende-se um manual da angústia! Vende-se um manual de ser!”

2 comentários:

  1. Eu juro que eu bem poderia ser esses ofortunados, com dificuldades de fomentar "questionamentos e inquietações". Mas nao o sou! Um dia, chego lá... Mas, voltando ao assunto: que texto otimo. Pegadas bem humoradas, às vezes, para falar sobre a angústia. Gostei da parte do "quase". Quase ri. rs... Esse gole rendeu um outro gole, que será publicado em breve - espero! Até mais.

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  2. Sabe, aquela expressão citada por Caio F. em uma de suas cartas define muito bem toda essa angustia retratada por você,meu caro literato :”Um sentimento de glória interior!”.Talvez não levada ao pé da letra,lógico,mas elas me transmitem uma espécie de cócegas internas,uma inquietude da alma.
    Esses espíritos angustiados ,cheios de frenesi estão por todos os cantos e ouso até em dizer que eles são a totalidade da população.O que ocorre é que algumas pessoas se entregam completamente a esse ato doloroso.O pior de tudo é que não se trata de questão de escolha,meu caro.O melhor é viver e não pensar ou pensar e pensar e viver e viver assim?EU NÃO SEI;apenas sei que não conseguimos viver sem isso.
    Não raras vezes a angustia funciona como uma bengala ou um TOC...


    Me ocorre em dizer agora: seu texto está ótimo e minha leitura aconteceu como se fosse regida por um maestro.ótimo!
    E lá vem aquele aperto no peito a me derrubar de novo

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Muito obrigado pelo seu comentário (dose)!

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