UM GOLE DE IDEIAS

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.: Um Gole De Ideias :. -> Dois anos no ar!

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sábado, 31 de outubro de 2009

Gênesis


Como uma multidão de sombras, a totalidade daquelas coisas que ali habitavam se somaram numa aproximação repentina. Antes disso, cada um com sua particularidade, repousavam na calma solitária das coisas vazias. Antes de começarem a querer ser um, todos eles elaboravam seu mundo na costa solitária e quotidiana. Uns se somavam em par e conseguiam umas cores novas, outros permaneciam negros e mudos.

Há de se notar certo tom de arte naquelas sombras. Todas elas aquarelas em ponto de acabamento, esperando um mergulho solitário de quem se atrever. Assim umas miram as outras, mas o terror da culpa pesa a locomoção. Estáticos de evolução e encantamento, cada coisa segue não sendo do mesmo jeito que antes. Mesmo assim as temíveis associações não tardavam a acontecer, diziam os otimistas.

Nunca tinha notado a beleza das sombras. Elas estáticas tendem naturalmente ao cinismo. E a paisagem vaga da falta das coisas aterroriza qualquer evolução não prevista. O nada se dissipando ao passo que os planos de união surgem. As benditas e sossegadas, as temíveis e amaldiçoadas, as medrosas e refugiadas, as religiosas e recatadas, os monges trôpegos, as fadas ligadas... todos esses e outros em assembleia planejam.

Há de se notar o entusiasmo das virgens desoladas, e o frio olhar dos santos libidinosos, todos eles nus de suas realidades. As sombras se deixam perceber por debaixo dos panos podres da antiga carapaça moral. Agora todas elas despidas encorajam-se lentamente e se afastam em círculo. E mais e tanto... até que esbarrem no limite máximo, entreolham-se, e ao contar três começam a correria desenfreada, o circulo se estrangula e se encurrala e todas se reúnem em choque.

A ideia!

Como uma multidão de sombras, a totalidade daquelas coisas que ali habitavam se somaram numa aproximação repentina.

segunda-feira, 19 de outubro de 2009

O MUNDO EM SILÊNCIO


Massashusetts - dezembro de 1968

Norte do Vietnã (1966)?! É para aonde partiria uma semana depois de um incidente. Militar, eu? No máximo era um produtor em massa de bombas... De chocolate: padeiro, 29 anos, casado com filhos, irmão do meio dentre três: John, o mais velho, foi combatente do Vietnã em 64 quando 15.000 homens compunham o nosso efetivo, mas pisou em uma mina; Robert completa os seus 14 anos nesse mês na véspera de Natal, mas não estarei para a festa. Havia recebido por correspondência uma notícia vexatória, mas não surpreendente: tinha sido recrutado para servir o meu país e completar, junto de outros como eu, o contingente de 385.000 combatentes norte-americanos.

É incrível como o mundo da voltas, pois um dia antes do episódio eu reclamara de barriga cheia pela sobrecarga de trabalho e achava não haveria como piorar a situação. Me fu... Enganei-me! Era tempo de festas e as nossas vendas iam de vento em poupa! Até hoje muitos moradores de Massachusetts contemplam e encomendam o nosso famoso panetone de alho: receita do meu avô, que Deus o tenha!


Já em minha casa, prestes a ser servido o jantar depois de um longo dia de trabalho para todos, viria uma pergunta clichê dos relacionamentos: - “Hoje você está diferente, Amor! Está calado, o que aconteceu?” – nem preciso dizer que essa é a minha Doroty. – “...Nada, Benzinho!” – respondi hesitando. Como que eu queria dizer simplesmente que havia uma amante entre nós, como um casal americano normal! – “Eu sei que está acontecendo alguma coisa” – ela insistiu com sede de apaziguação. Eu não queria atrapalhar o nosso jantar, então a disse que depois conversaríamos com toda a família, esta que nem cheguei apresentá-la ao todo.
Os sete dias mais árduos da minha vida se passaram. Fui pegar o trem que me levaria para costa, aonde adentraria uma embarcação militar. Via minha família reunida na estação se embaçando a cada metro percorrido pelo vagão, mas enquanto não sumiam no horizonte suas mãos balançam gestos de despedida que mais me pareciam um chamado. Segui refletindo toda uma vida naquela viagem.


Chegado à embarcação, recebi alguns treinamentos e depois fui para o campo de batalha suicida: alguém que só sabia manusear uma faca de pão não teria chance contra os vietcongues. Mas tive! Por sorte, éramos tantos que eles não estavam dando conta. Matei algumas pessoas e penso que estes poderiam estar ali assim como eu, sem defender ideal algum.


Ainda em tormenta acabei me afastando da guerra. Num minuto eu estava no campo de batalha amedrontado e tenso, quando simplesmente apaguei. Acordei dias depois no alojamento do corpo de saúde. Acerca de alguns metros um aliado pisou numa mina, assim como pisara meu irmão, levando embora sua vida. Devido o acidente, sofri algumas queimaduras e a pressão sonora foi tamanha que todos os sons morreram para mim. Quase todos: ainda ouço o som da guerra na minha cabeça e um zumbido infernal me perturba, roubando o meu sono e minha paz.

Voltei para casa como herói. Mas não fiz nada, eu acho. Mesmo com a cabeça envolvida por ataduras pude ver minha mulher e meus filhos correndo em minha direção em prantos. Via-os, mas não pude ouvi-los, assim, também me verti em lágrimas. Eufóricos, eles gritavam o meu nome - eu pude ler em seus lábios. Choravam de felicidade e eu também estava um tanto feliz por vê-los, mas o sentimento que principalmente me acompanhava não era esse. Um inválido! Era isso que eu era a partir daquele momento.


O jornal de notícias que eu acompanhava enquanto modelava os pães, os finais de semana apreciando o meu Jazz, o choro de meus filhos, as palavras doces de Doroty e tudo mais, nunca mais eu os ouviria. Restou-me escrever.

domingo, 11 de outubro de 2009

Diante do Espelho Tinha uma Pedra

Tava tudo meio que rodando quando decidi levantar depois de três horas desmaiado ali. A cabeça rodava tentando encontrar um centro de equilíbrio e os pés tateavam o chão cheio de obstáculos. Roupas. Cacos. Copos. Poças. Minhas pernas fadigadas do ontem exagerado que tive e minha barriga globosa de farturas. A cabeça em espiral desejava a lucidez cotidiana e os costumes e a antiga forma de se ver. Diante do espelho miro um rosto opaco e languido que me vi transformar.

A tarde amanheceu ligeira
Com meus trôpegos desejos
Fiz da sorte força primeira
pra coincidir todos os ensejos

Quis fazer da beleza inteira
Pura dor e ocultar lampejos
Tive a festa tão costumeira
Quanto o verso que despejo

A dor laboriosa reflete clara
E eu calado penso nas certezas
E eu calado minto cordialidades

Tão tímido sinto enfermidades
Detestadas vezes tanta frieza
Que o espelho em mim declara

A velha mente nos meus ouvidos. A velha tendência ao ostracismo. E me guardo de mim tão hermeticamente que às vezes esqueço a liberdade do não. E sigo encurtando os caminhos e sorrindo ao comum. É o que vejo no espelho. E o espelho sou eu.

quinta-feira, 1 de outubro de 2009

quem não cola não sai da escola... ou não entra na faculdade


Já tá tudo certo, amanhã, terça-feira, pego uma cópia do material que você encomendou; seu filho vai mandar bem com essa cola, até sábado um professor amigo nosso pode resolver as questões. O pior é que meu filho ainda terá que decorar a sequência das letras, coitado; mas todo crescimento exige uma série de sacrifícios. Ah!, patrão!, o muleque ta na frente do Brasil inteiro e ele ainda pode fechar e dar entrevista no jornal nacional, já pensou?, o que ele vai ser mesmo? Médico! Num ta fraco não, hein?! Chega de conversa, cara!, ainda falta muito tempo pra essa prova; tenho medo de vazar essa informação. Você já deu uma imprensa naquele muleque?, ele quase falou com o vizinho numa carona que nós demos a ele depois do colégio; eu estava lá dirigindo mais o ouvido atento me alertou bem na hora que ele disse ter certeza que mandaria bem; e deu uma olhada que me encontrou pelo espelho. Meu filho deve mesmo estar louco!, ele ta pensando o que?, que é uma professorinha de matemática que a gente suborna? Igual a gente fez ano passado, né chefe?! Já está na sua hora, vá!, você tem que buscar o menino na escola. Sim senhor!, ainda falta aquela última parcela que eu devo pagar ao cara da transportadora da gráfica, lembra? Pode deixar que sei dos meus compromissos; deixei por último porque a quantia é alta, mas no fim da tarde estará tudo resolvido: quero essa prova hoje nas mãos do meu filho.

Pai!, consegui fazer uma grana com algumas “previsões” do tema da redação da prova do domingo. Como é que é, filho? Tô rico, pai! Você enlouqueceu?, já ouviu falar de violação?, segredo de estado?, você faz ideia de quantos crimes o seu pai pode ser condenado?, o exame pode ser adiado!, eles podem até criar uma CPI para investigar os culpados, tô fudido! Ah!, pai!, deixa de ser exagerado... que rico vai preso no brasil?, ou ainda, que CPI acha algum culpado?, estamos assegurados e eu passarei em primeiro lugar no vestibular de medicina!; e olha que eu nem sei nada de física, hein?! Filho vou ser obrigado a te deixar de castigo, agora!, em plena maioridade; nada de festas essa semana, ouviu?, e a chave do conversível fica comigo!, sem passeios no meu helicóptero, sem sair do nosso condomínio e sem internet! Qual é pai? E se eu for preso você terá que aparecer em público com uma desculpa satisfatória, pode até ir inventando!, qual é mesmo o telefone do advogado chefe da OAB?
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